"E se tudo o que você vê for mais do que aquilo que você vê - a pessoa ao seu lado é um guerreiro e o espaço que parece vazio é uma porta secreta para outro mundo? E se aparecer algo que não deveria? Ou você ignora, ou aceita que há muito mais a respeito do mundo do que você pensa. Talvez haja mesmo uma porta, e se você escolher entrar, encontrará muitas coisas surpreendentes."
Shigeru Miyamoto (Nascido Para Jogar)
"Discorrer, ainda que exaustivamente, sobre uma disciplina, não substitui o essencial, que é a discussão sobre seu objeto. Na realidade, o corpus de uma disciplina é subordinado ao objeto e não o contrário. [...] Nossa secreta ambição é que esses conceitos, noções e instrumentos de análise apareçam como verdadeiros atores de um romance, vistos em sua própria história conjunta. Não será a ciência, tal como propôs Neil Postman 'uma forma de contar histórias'?"
Milton Santos (A Natureza do Espaço)
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Índice:
Prelúdio
Parte 1 - A Geografia no Videogame
Introdução-> Cavando a essência geográfica do Videogame
1- (Ciber) Espaço Geográfico: Um conjunto indissociável de sistemas
2- Escala
3- Paisagem
4- Território
5- Região
6- Lugar
7- Redes
8- Cartografia
Interlúdio
Parte 2 - O Videogame na Geografia
Introdução-> Os Videogames num espaço não tão ciber
9- Paisagens, regiões, territórios e lugares-> As influências do ciberespaço gamístico
10- Mercados negro e cinza-> De onde sai, pra onde vai, por onde passa
11- Mapeamentos-> Quem, o quê, quando, como, onde, por quê
12- Geografia Histórica e perspectivas-> Levando o tempo em consideração
Posfácio
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Prelúdio
Videogames são um caminho sem volta e qualquer marmanjo hoje, do alto de seus 30 e tantos anos, com Mario pesando em um ombro e Sonic pesando no outro, sabe disso. E como a história (não tão) recente nos conta, outros nomes engordaram essa mochila de uns 10, 20 anos pra cá.
Eu adoro meu país com todas as forças (ser ao mesmo tempo bairrista e geógrafo tem dessas coisas) mas, apesar de o entretenimento ser parte importante daquilo que o Videogame é, eu lamento do fundo de meu ser aquela já clássica mentalidade geral no Brasil de que Videogames ainda são coisas de criança, brinquedos tal qual um carrinho de pilhas ou uma boneca que diz "mama".
Isso apesar de dezenas de pesquisas populacionais mostrarem, ano após ano, que a maioria esmagadora dos jogadores tem mais de 20 anos de idade. Inclusive no Brasil.
Mas como todo bom caminho sem volta, Videogames fazem você olhar tudo coisa com uma lente típica. Enquanto qualquer leitor compulsivo vê o mundo pelo prisma das palavras, e todos os cinéfilos observam o que acontece pensando em ângulos e roteiros, é claro que os gamemaníacos não podiam fazer diferente. Foi assim que surgiram grandes bandas de metal e orquestras sinfônicas, inspiradas pelas trilhas sonoras gamísticas - respectivamente Mega Driver e Video Games Live, por exemplo - dignas de superlotarem centros de convenções imensos (pois as maiores casas de show já não davam mais conta) e moverem sozinhas montanhas de dinheiro.
Também foi com as lentes dos Videogames que a imprensa especializada nasceu, cresceu e prossegue faturando cada vez mais. Antigamente, você ganhava muito pouco dinheiro fazendo jogos; hoje, você apenas escreve sobre jogos e isso paga as suas contas. E se você for bom, seu salário não será pequeno. Há quem duvide, mas as numerosas revistas que tratam do assunto e a história de sites como Finalboss, IGN e Gamespot não me deixam mentir.
Assim, com esses óculos de gamemaníaco que uso desde os 4 anos, unidos à mania de escritor que tenho desde os 7, e a lente geográfica que me acompanha desde a metade de 2011, não tive como não pensar, lá pela minha terceira ou quarta semana de curso, calouro de Licenciatura em Geografia na UFRJ - mais precisamente, quando ouvi falar pela primeira vez em "ciberespaço" como conceito geográfico - que terminando a faculdade eu iria publicar um livro que misturasse Geografia e Videogames. Porque a Geografia é um caminho tão sem volta quanto os Videogames.
E todos os caminhos sem volta, afinal, não têm volta.
Por isso, este é um livro que tem um monte de razões pra existir.
A mais importante é a única que não tem nada a ver comigo, a não ser pela profissão e ideais que escolhi. Ela tem mais a ver com a importância suprema de se aprender Geografia (e qualquer outra ciência) de uma forma, muito infelizmente, diferente daquela que é usada nas escolas, e muitas vezes nas faculdades. Explico com duas observações essenciais:
a) A Ciência que se aprende no Ensino Fundamental (E.F.) e no Ensino Médio (E.M.) quase nunca tem nada de científico. Como 90% dos estudantes universitários de [ciência XXX] ouvem na 1ª aula: "Esqueçam completamente tudo o que vocês ouviram falar no E.M. sobre [ciência XXX]. A partir de hoje, vocês vão conhecer a [ciência XXX] de verdade." O Capítulo 1 é onde vou discutir o caso da Geografia.
b) Não tem, na hegemonia esmagadora da Educação no Brasil, principalmente na Educação Básica (já que nas faculdades ainda rolam 1% ou 2% de estudantes que frequentam ótimos cursos) um modelo didático-educacional que fuja ao horrível lugar-comum que permeia nossas escolas. As bem-aventuradas e raras exceções, infelizmente, são exatamente o que são: raras e bem-aventuradas exceções. Por mais que eu tenha observado isso a vida toda (a vontade de trabalhar na sala de aula já é velha) a entrevista que fiz, ainda calouro, com um ex-estudante da rede federal Colégio Pedro II sobre como esse colégio tinha de trabalhar Geografia, para meu trabalho Levantamento de possíveis problemáticas na abordagem da Geografia e da Ciência no Ensino Médio brasileiro, me deixou pasmo de forma não muito legal. Vale lembrar que, ironicamente ou não, o Colégio Pedro II é nacionalmente reconhecido pelos seus "ótimos cursos de ciências humanas".
Então este livro é uma tentativa de aprender Geografia fora do lugar-comum.
Ele também é um pedacinho do enorme esforço que faço, e sempre fiz, pra combater o estereótipo do Videogame e do jogador no Brasil. Como já disse, me revolta essa forma de arte ser marginalizada no meu próprio país, de duas formas: um entretenimento meramente infantil (além de não ser verdade, parece que “entretenimento infantil” é ruim, como se as crianças enquanto público-alvo não fossem importantes e valorosas de modo inestimável); ou então uma espécie de "coisa" do universo paralelo dos nerds espinhentos, criaturas sem vida social e isoladas do mundo, a não ser pela internet.
Uma discriminação bem parecida, por sinal, com o que acontece com outras duas formas de arte: Quadrinhos e Animações. Esse é, como uma consultinha no Google pode conferir, um dos principais motivos por que essas são as três artes recordistas em pirataria (mercado negro) e em contrabando (mercado cinza), sendo o Cinema o único "concorrente" à altura, seja por camelôs ou por downloads. E de todas essas quatro, os Videogames são quem movimenta mais grana globalmente, por mais mania de grandeza que Hollywood tenha.
Para não mencionar o problema tributário. Estarem à margem assim e com um mercado negro e cinza tão fortes faz com que
Videogames estejam entre os produtos com maior nível de imposto no país - seja para importar, seja para fabricar aqui - o que leva ao crescimento do mercado negro/cinza, o que aumenta a marginalização e por aí vai. Para dar uma pequena ideia, enquanto um jogo de PlayStation recebe os mesmos impostos que uma Barbie importada, o próprio PlayStation recebe os mesmos que as máquinas de caça-níqueis. Sim, aquelas que Las Vegas usa.
Então eu, numa postura pra lá de clichê, volto ao meu discurso velho e manjado de que jogadores de Videogame, como bons nerds que somos, também namoram, ouvem música, dançam, vão ao bar pra rir e falar bobagem, brigam com os pais e com os filhos, se embebedam nas chopadas da faculdade, entram no ativismo político e se interessam por Arte e por Ciência. Com a diferença de que nos interessamos também por alguma forma de cultura que não é tão badalada: Quadrinhos de autores quase anônimos, Animações do outro lado do mundo e em outros idiomas, Videogames... Esses são apenas alguns exemplos.
O que nos leva à terceira razão de existir desse livro: uma salada mista de vários gostos meus, pelo mero prazer de misturá-los. No meu caso, o gosto por Videogames que trago da infância se mistura ao interesse pela ciência da Geografia que nutro desde o E.M. e cresce cada vez mais. Essa mistureba por sua vez se mistura ainda mais ao vício que tenho em escrever desde que aprendi o ABC, motivo por que desde muito antes de entrar na UFRJ eu já escrevia sobre Videogames. Agora vamos lembrar que explicar alguma coisa a alguém, assim como escrever sobre ela, são duas das melhores maneiras de se aprender essa coisa, e que eu sou fissurado por aprender e por ajudar a aprender. Não escolhi a profissão de orientador à toa e minha tendência iluminista também já acumulou muitas primaveras. Então somando todos esses gostos - Geografia, aprender, explicar, escrever, Videogames - eu não ia perder a oportunidade de fazer uma salada mista com eles.
E de quebra, ainda arranjei um bom tema pro trabalho de conclusão da faculdade: o uso da Arte como forma alternativa de se aprender Ciência - o exemplo da Geografia e do Videogame.
A nossa brincadeira consiste então no seguinte.
O livro se divide em duas partes. A primeira olha pra Geografia intrínseca ao Videogame - não “aos videogames”, não a esse ou àquele jogo, mas ao próprio fenômeno gamístico, ao organismo do Videogame em si. Aqui é onde eu tento explicar, com o máximo de clareza e transparência cristalina que puder, que ter uma dose de Geografia faz parte daquilo que é ser um Videogame. Que não existe Videogame sem Geografia. Em linguagem acadêmica, eu vou tentar demonstrar por A + B que a Geografia é, por causa da natureza de ambos, um elemento epistemológico essencial (embora não o único) do Videogame. Pra isso eu vou ter que explorar, penetrar, mergulhar, cavar na essência do Videogame no núcleo da sua própria natureza, no mais íntimo e profundo do seu ser, e retirar da medula dele a dose de Geografia que mencionei. Parece sem noção e bizarro, eu sei, mas é assim que funciona. E podem acreditar que ali tem Geografia, e se você duvidar disso depois de ler essa primeira parte é porque eu fracassei miseravelmente na escrita do livro.
Nos capítulos da primeira parte, então, eu vou apresentar os conceitos mais essenciais da Geografia, os chamados instrumentos e categorias de análise dela, sem os quais essa ciência simplesmente não existe, e vou explicar todos sob a lente gamística. Enquanto eu for fazendo isso, eu espero conseguir fazer vocês, leitores, entenderem cada um deles - e portanto aprenderem Geografia - ao mesmo tempo que demonstro que todos fazem parte da tal natureza do Videogame. Escolhi os conceitos do espaço (no nosso caso, ciberespaço), da escala, paisagem, território, região e lugar. Vou concluir essa parte com a Cartografia, ciência à parte da Geografia, mas que está tão entrelaçada (quem nunca na vida pensou que a Geografia fosse a ciência dos mapas por favor atire a primeira pedra) que chega a merecer um capítulo só dela. Para cada capítulo, escolhi um jogo de Videogame pra ser exemplo que, acho eu, é o melhor pra espelhar tal conceito, embora todos os conceitos sejam aplicáveis a todos os jogos.
Na segunda parte vou inverter o processo, e tentar mostrar como os diversos elementos participantes da dinâmica dos videogames, no mundo concreto não-virtual, estão inseridos na Geografia mais comum, mais normalmente trabalhada. Aqui eu deixo um pouco na prateleira o objetivo de explicar Geografia e de cavar a essência do Videogame, acreditando que essas duas questões já estão bem explicadas na primeira parte e que vocês já enxergam isso tranquilamente, e parto pra outro tipo de explicação: a de que o Videogame tem aspectos externos à sua natureza, aspectos que ele tem por ser um objeto, que podem ser descritos geograficamente. Então a ideia aqui é fazer essa descrição - que tem o desejo pela explicação como combustível - de como estão, na Geografia do nosso mundo contemporâneo, situados, objetivados e acionados os Videogames e tudo o mais que estiver junto deles. Por exemplo, vou destrinchar geograficamente a questão da pirataria e dos produtores e críticos da indústria gamística, dentre outras coisas.
Essa segunda explicação passa longe de ser notícia; a bem da verdade, qualquer um que procure na internet, nos artigos e notícias da imprensa especializada, encontra praticamente tudo o que eu vou dizer na segunda metade do livro. A novidade, então, é a lente geográfica que eu vou usar, além de ter tudo sistematizado junto. Por mais que isso pareça um detalhe bobo, faz diferença. Faz diferença porque é mais fácil enxergar os detalhes do fenômeno e descrevê-lo minuciosamente do que conseguir analisar o quadro-geral. O quadro-geral, quase sempre, fica distorcido pela observação através da lente cada vez mais concentrada e especializada do conhecimento humano, e é exatamente contra essa maré que quero ir com essa parte do livro.
Certa vez, como já citei, Milton Santos propôs (não pela primeira nem pela última vez na História) que a Ciência fosse uma forma de contar histórias.
Com este livro, eu vou tentar contar uma delas. Se conseguir, me dou por satisfeito.Marcelo Mata P. C. Barbosa
Maio de 2012
[data de quando eu terminar de escrever]
Tá ficando bonito? =D